Se não se tornam mães, são hostilizadas e perdem o respeito da comunidade. Com isso, tentam evitar o abandono do marido ou que ele tenha filhos com outras
Por Fernanda Bassette
Tem sido longa, dura e solitária a jornada de quatro anos que Laura enfrenta para ter um filho nos braços. Daria um filme a saga dessa auxiliar administrativa angolana, que, como outra entrevistada, a professora Joana, aparece com nome fictício por não poder se identificar. Laura precisou atravessar o Oceano Atlântico três vezes para, no Brasil, submeter-se a quatro procedimentos de reprodução assistida, tomar “bombas” com altas doses de hormônios, elaborar sozinha o luto de um aborto espontâneo e lidar com o medo de perder o marido, um arquiteto, caso tudo desse errado.
Além de um desejo de infância, ser mãe, para ela, é uma necessidade. E pela sua idade, 48 anos, virou também uma grande urgência. Na cultura de Angola, país de Laura, uma mulher só é reconhecida socialmente se estiver casada. Mais do que isso, seu valor está diretamente ligado ao número de crianças que dá ao marido. Não ter um bebê no relacionamento pode resultar no abandono pelo esposo ou no caminho da resignação. Uma mulher que não frutifica – como se diz por lá – deve aceitar que ele faça herdeiros fora do casamento. “Essa é uma luta que infelizmente ainda travamos. Eu quero e preciso construir uma família”, resume.
Nascida em Luanda, a capital, Laura é uma entre centenas e centenas de angolanas que dormem e acordam pensando em juntar dinheiro para viver meses a fio em São Paulo, uma cidade desafiadora e difícil, em busca da maternidade. Joana, 30 anos, enfrentou vários tratamentos e deve desembarcar no Brasil pela primeira vez, em breve. Há uma década, é esposa de um policial que já tem dois filhos fora do casamento. Ela nem sequer descobriu o motivo da sua infertilidade, embora nos últimos oito anos tenha corrido atrás de um diagnóstico. A professora demonstra esperança na reprodução assistida. Ela relata as ofensas que sofre. “Ouço de pessoas ao meu redor que sou como uma vaca que não dá leite. Uma cadela seca. Antes, eu reagia. Depois, passei a chorar. Agora, só fico a olhar.”
Hermelinda Marques, 34 anos, tenta engravidar há 15, e enfrenta bullying tão nocivo quanto esse. “Os vizinhos e os familiares me dizem: ‘Está a acabar a comida?’”. Nessa expressão muito comum no país, entende-se que “o marido trabalha, sustenta a casa, enquanto a mulher só se aproveita da situação e não lhe dá um filho”. Ela bem que tentou, mas no oitavo mês de gestação o líquido amniótico vazou. O bebê havia morrido dias antes. “Custei a acreditar. Onde errei? Fiz tudo direitinho, não tomei um paracetamol sem avisar a médica”, conta Hermelinda, que engravidou no Brasil em 2016 e planeja voltar.
Por que aqui? No país, podem falar a língua delas, o português, e encontram excelência em reprodução assistida. A possibilidade de um espermatozoide se juntar ao óvulo e formar um embrião é de 73%. As chances de engravidar, porém, são de cerca de 35% aos 40 anos e, acima disso, 25%. Em 2016, as 141 clínicas brasileiras realizaram 33,8 mil procedimentos e transferiram 67, 3 mil embriões. Uma africana recomenda esses consultórios particulares para a outra, e os mais conhecidos são Engravida, Mãe, Projeto Alfa e Chedid-Grieco.
A médica Silvana Chedid, especialista há 30 anos, dona da clínica que leva seu sobrenome, notou o aumento da demanda após atender uma nigeriana, há dez anos. “As pacientes vivem situações dramáticas. Uma contou que foi expulsa de casa por não conseguir ser mãe. Muitas pedem: ‘Pelo amor de Deus, me ajude a ter um filho’ ”, diz Silvana.
No Projeto Alfa, durante os anos 2010, que coincidem com o período em que a economia esteve aquecida em Angola, eram até 15 pacientes por mês. O responsável, o médico Cristiano Busso, foi convidado a instalar em Luanda a primeira clínica especializada. Viveu ali por um ano. Em um único dia, Cristiano atendeu 40 angolanas. “Elas me olhavam como se eu fosse um santo milagreiro”, recorda o médico, que desistiu da empreitada. “Eu não conseguia levar o tratamento adiante porque não havia legislação sobre o uso da técnica. Era frustrante.”
Em Angola, sabe-se de apenas um anteprojeto de lei, proposto em 2010 pelo Ministério da Saúde, que nunca chegou a ser votado. “A saúde no país ainda está em moldes ultrapassados; o descaso dos políticos leva à falta de regulamentação para a reprodução assistida e também para os transplantes”, reclama o especialista em reprodução humana José Gil Ferreira, português, radicado naquele país, e que atua no apoio aos casais que tentam ter filhos no exterior.